Em 1962, um empresário chamado Nelson Fernandes teve a idéia de vender ações para constituir uma empresa nacional que fabricasse automóveis. Para ele, que já havia construído um hospital e um clube pelo mesmo método (o Acre Clube e o Hospital Presidente), a empreitada só exigia o auxílio de gente gabaritada para o serviço e a simpatia popular. Mesmo com essas duas coisas, Fernandes enfrentou mais dificuldades do que imaginava. O resultado foi o naufrágio do sonho, além do prejuízo para milhares de investidores, que passaram a ter uma idéia errada sobre o empreendimento e sobre o empreendedor, reputados ambos como fraudes. Pois é justamente essa história que pode ser lida no livro “Democrata, o carro certo no tempo errado”, de autoria do jornalista e advogado Roberto Nasser.
A história do próprio nascimento do livro já é das mais interessantes. Antigomobilista praticante, como se define, Nasser é dono de raridades, como FNM Onça, talvez o único que ainda exista, e recebeu uma oferta de compra de um dos protótipos existentes do Democrata. Zeloso, deu-se conta de que a única pessoa que poderia vender a ele o carro seria o fundador da empresa, Nelson Fernandes, e tentou, de todos os modos, encontrar o empreendedor. Localizou-o e aí teve a idéia de contar a história do carro, digna de ser o roteiro de um filme, e dos bons. Pena que sem final feliz.
O livro conta que, depois que teve a idéia de montar uma fábrica de automóveis, e justamente numa época em que a indústria brasileira estava nascendo, Fernandes procurou Luiz Carlos Fagundes, um de seus melhores amigos naquele tempo, para ter uma orientação sobre o que produzir. Da conversa, ficou a idéia de fabricar um carro de conceito americano, mas aparência européia, com carroceria de fibra de vidro, a exemplo do pequeno esportivo Interlagos, com o qual Fagundes trabalhava na Willys. Mas, de início, a fábrica entregaria carros populares, baratos e robustos, para enfrentar as péssimas estradas da época. Triste perceber que pouca coisa mudou de lá para cá em relação a nossa malha viária...
O motor seria traseiro, para baratear custos e diminuir o número de peças, como convinha à maioria dos carros populares daqueles tempos, como o VW Fusca e o Fiat Cinquecento (Citroën 2CV e o Mini tinham motor dianteiro). No Brasil, os carros mais sofisticados eram o Simca Chambord e o FNM 2000, com tecnologia Alfa Romeo. Os populares eram os Willys Dauphine e Gordini (também chamados de Leite Glória, porque, diziam as más línguas, desmanchavam sem bater), o VW 1.200, o Fusca, e o DKW-Vemag Belcar, o preferido dos taxistas, com seu motor 1-litro de três cilindros.
Outro dos pedidos que Fernandes fez a Fagundes foi que ele lhe indicasse alguém para tocar a produção do novo carro. O próprio Fagundes tinha conhecimento em indústria automobilística, já que trabalhava na Willys e preparava os veículos da empresa para competições, mas indicou Fernando Beraldin, responsável pela fabricação do esportivo da Willys, para a tarefa. Num primeiro momento, Beraldin não se interessou, mas acabou integrando a IBAP (Indústria Brasileira de Automóveis Presidente), nascida em outubro de 1963, posteriormente.
Os nomes escolhidos para a empresa e para o carro se mostraram fatídicos no ano seguinte, mais especificamente em abril, quando um golpe colocou os militares no poder. Desde aquele momento já se podia imaginar que um carro batizado de Democrata e fabricado por uma indústria de automóveis chamada Presidente pudesse despertar a antipatia do governo de então. E não deu outra.
O primeiro percalço foi a venda de ações, que não tinha um carro que as justificasse. Como se dizia na época, Fernandes andava mais rápido que os protótipos e vendera, sem muita divulgação, 35 mil dos 400 mil títulos previstos para a fábrica conseguisse o capital necessário a sua plena operação. Os críticos passaram a bombardear a IBAP alegando que ela fabricava vento. Era necessário mostrar um veículo rapidamente.
A necessidade de ter um veículo que despertasse o desejo dos consumidores acabou levando o projeto a se sofisticar. Em vez de um motor pequeno e de um carro popular, a IBAP produziria um automóvel de luxo. Com seu sucesso, a empresa poderia pensar em um automóvel popular mais adiante, uma decisão acertada, considerando que carros baratos precisam ter um volume significativo, algo difícil de obter com produção de carrocerias em fibra de vidro.
De todo modo, a grande sacada de Nelson Fernandes foi criar um veículo brasileiro, que não pagaria royalties a nenhuma empresa estrangeira e que, portanto, teria a condição de ser mais lucrativo do que qualquer um de seus concorrentes. Ou, risco dos riscos, mais barato e atraente. Isso não escapou à observação das multinacionais instaladas no Brasil, como o livro de Nasser relata aqui e ali, em episódios evidentes da interferência de outras empresas para tentar sufocar a IBAP, inclusive ameaçando grandes empresas jornalísticas de cortar a publicidade que faziam. Com isso, a imprensa passou ignorar o carro e, em alguns casos, a atacá-lo, conforme Nasser demonstra com recortes das matérias da época.
O primeiro protótipo surgiu no final de 1964. Era a primeira geração do carro, uma proeza, considerando que o Democrata nunca chegou a ser vendido em série. Composta por cinco automóveis, ela foi mostrada inclusive ao presidente Humberto de Alencar Castello Branco, que aparece numa das fotos de Golbery do Couto e Silva, o homem que criou o SNI (Serviço Nacional de Informação). Mas, de tão parecido com o carro que o inspirou, o Chevrolet Corvair, foi mostrado muito pouco. Nasser também o compara ao Rumbler, um veículo da American Motors. De qualquer modo, já havia servido ao propósito de mostrar que a empresa era, sim, capaz de construir automóveis.
Isso não impediu que governo, concorrentes e a própria imprensa continuassem a atacar o carro. Nem a empresa de continuar a desenvolvê-lo, criando a segunda geração do Democrata em fins de 1967. José Luiz Vieira, colunista do WebMotors, testou o carro, considerando-o bom, para a época. Não era para menos. O Democrata tinha motor italiano, com projeto comprado pela IBAP e, portanto, condições de ser fabricado no Brasil. Tratava-se de um V6, com bloco em alumínio, cilindros com ângulo de 60º entre si e 2.498 cm³ de deslocamento total. O comando de válvulas era no cabeçote, com a possibilidade de ter quatro válvulas por cilindro, e o carro gerava 120 cv a 6.000 rpm pelo método Cuna de medição. Com 1.150 kg, eles levavam o Democrata a 170 km/h de máxima, muito mais do que o que seus concorrentes poderiam almejar.
Apesar de ser um carro de luxo, o Democrata manteve a concepção do popular que não seria nem projetado, com porta-malas na dianteira e motor na traseira. A estabilidade, pelos comentários da época, não deixava a desejar à de outros veículos, e a suspensão, independente nas quatro rodas, respondia bem. O Democrata era grande, com 4,68 m de comprimento, 1,72 m de largura e 1,39 m de altura.
Carrocerias foram produzidas para demonstrações públicas da durabilidade da fibra de vidro de modo itinerante. Pessoas na casa dos 50 anos certamente lembram de ter visto algumas dessas apresentações do carro, impressionantes: a carroceria era golpeada e queimada, inclusive pelo público. E os títulos continuaram a ser vendidos, apesar da propaganda contrária.
Combatendo contra inimigos fortes, Fernandes acabou não resistindo, ainda que tenha tentado bravamente fazê-lo. Os diretores da empresa sofreram perseguições pessoais e diversos processos judiciais se seguiram, enfraquecendo a empresa. O golpe final foi a proibição, pelo Banco Central, da venda das ações. Anos depois, ficou provado que o empreendimento era seguro e tinha garantias, mas a demora da Justiça em decidir a causa levou as instalações da IBAP à ruína. Um lote de 500 motores, importado da Itália, foi vendido como sucata.
O livro conta toda essa história, com maior riqueza de detalhes, depoimentos e fotos do que essa reportagem poderia transmitir. O sonho de uma indústria de carros nacional foi o mesmo que alimentou João do Amaral Gurgel por tantos anos (leia mais sobre isso aqui, com o mesmo final. Uma nova empresa brasileira, a Obvio!, tenta trilhar o mesmo caminho e, para isso, conseguiu um feito tentado por Fernandes e não obtido: a compra da Fábrica Nacional de Motores, mais conhecida como FNM (ou fenemê, para os íntimos). Tomara que ela tenha mais sucesso que suas predecessoras.
É de elogiar, no livro de Nasser, que ele tenha resistido a comparar Nelson Fernandes a Preston Tucker, que também quis criar uma fábrica de automóveis nos EUA e teve o mesmo destino que o brasileiro, ou seja, viu seus planos frustrados, mas a referência, nessa reportagem, não podia faltar. Por essas e outras é que o livro de Roberto Nasser não é apenas interessante; ele é indispensável à biblioteca de qualquer apaixonado pela história da indústria nacional.
Sei onde ficava a fabrica,ainda tem o espaço,é gigante,uma pena a IBAP ter sido perseguida pelas montadoras maiores.
ResponderExcluirMarco Fabio Fiorio Roberti
São Bernardo do Campo-SP